Marielle: o silenciar de uma inocência
THEMIS ONLINE 29.OUT.2019
“Saiu da casa da cartomante aos tropeços e parou no beco escurecido pelo crepúsculo – crepúsculo que é hora de ninguém. Mas ela de olhos ofuscados como se o último final da tarde fosse mancha de sangue e ouro quase negro. Macabéa ficou um pouco aturdida sem saber se atravessaria a rua pois sua vida já estava mudada. E mudada pelas palavras – desde Moisés se sabe que a palavra é divina. Até para atravessar a rua ela já era outra pessoa. Uma pessoa grávida de futuro. Sentia em si uma esperança tão violenta como jamais sentira tamanho desespero. Se ela não era mais ela mesma, isso significava uma perda que valia por um ganho. Assim como havia sentença de morte, a cartomante lhe decretara sentença de vida. Tudo de repente era muito e muito e tão amplo que ela sentiu vontade de chorar. Mas não chorou: seus olhos faiscavam como o sol que morria.
Então ao dar o passo de descida da calçada para atravessar a rua, o Destino (explosão) sussurrou veloz e guloso: é agora, é já, chegou a minha vez!
E enorme como um transatlântico o Mercedes amarelo pegou-a – e neste mesmo instante em algum único lugar do mundo um cavalo como resposta empinou-se em gargalhada de relincho.” (Lispector, Clarice. A hora da Estrela. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2008, pp. 79-80).
Clarice Lispector, uma escritora ucraniana, e mais tarde uma imigrante no Brasil, escreveu seus textos em português, presenteando os brasileiros com sua obra fascinante. Em seu livro “A Hora da Estrela” (Rocco, 2008), Clarice abordou o tema da miséria humana com sabedoria ao retratar a vida e o silenciar da inocência de Macabéa, a mulher comum que autora escolhera alçar do anonimato.
Marielle Franco é uma política brasileira em ascensão. Uma mulher – não uma personagem – cujo destino foi drasticamente interrompido. Ela é uma mãe solteira. Ela é socióloga. Ela é negra. Ela é lésbica. E apesar da junção de elementos que, em nossa sociedade, poderiam condená-la a uma miséria anônima, ela está obtendo sucesso. Seu sonho de um futuro melhor e mais justo para todos e todas está se tornando realidade.
E então (disparos de arma de fogo) ela está morta – brutalmente executada no centro do Rio de Janeiro.
O crepúsculo da inocência da mulher materializa-se. Torna-se um fato, um fardo.
Nada além do vazio e do silêncio para substituir a sua existência agora.
O contexto da execução de Marielle permanece inexplicado. Quem dera a ordem para matá-la permanece livre. O impacto social de sua morte é sensível e evidente e, assim como o seu executor, irradia o seu mal livremente, impunimente. No país em que a maioria da população é negra, o cruel assassinato de uma política negra em ascensão faz todo o sentido. É uma mensagem clara. É a demarcação de uma fronteira. É uma linha de morte.
Durante a sua vida, Marielle sempre foi corajosa. Ela incorporou o espírito de uma geração de brasileiras e brasileiros que buscam na inclusão social o caminho para superar a realidade de um país onde a exclusão é a regra, e não a exceção. Marielle era uma ameaça ao sistema, e por isso ela merecia desaparecer.
Assim como Macabéa, Marielle teve a sua inocência esmagada, não por um Mercedes, mas por um juiz impiedoso. Sua sentença foi de morte. A mulher acreditava nas instituições democráticas de seu país. Era uma cidadã com o objetivo de mudar a injusta realidade ao seu redor através do Estado de Direito. Marielle jogava o jogo dentro das regras, e as suas táticas estavam funcionando. Ela fez a miséria anônima de milhares algo palpável e visível. Marielle levantou-se contra a ocupação militar em favelas do Rio de Janeiro. E lutou por oportunidades iguais para todos e todas, não importando sua cor, gênero ou orientação sexual. Foram esses os seus crimes.
As histórias de Macabéa e Marielle se interconectam como uma metáfora perfeita para os problemas que o Brasil enfrenta hoje em dia. Uma geração de brasileiros nascidos após o fim da ditadura militar (1964-1985) cresceu com a convicção de que o poder da democracia é a ferramenta mais eficaz para reformar a sociedade e buscar um futuro melhor. Mais igualdade, direitos e a consolidação do programa de democracia social da Constituição de 1988. Não haveria mais muros virtuais dividindo pessoas, mas pontes para incluir e aproximar diferentes grupos da sociedade. Como a cartomante previra a Macabéa, aos brasileiros e brasileiras muitas vezes previu-se um futuro próspero. Afinal de contas, a economia crescia, as instituições democráticas pareciam funcionar e as políticas sociais inclusivas se mostravam efetivas. De certa maneira, a ascensão de Marielle representou uma prova desse momento progressivo e inclusivo. Caso contrário, sob a velha gramática, agora com ares de nova, como alguém como Marielle seria capaz de encontrar um lugar sob o sol e triunfar?
Assim como no futuro frustrado de Macabéa, a crença de Marielle em um futuro melhor durou tanto quanto o momento abruto em que o destino a pegou e levou a sua vida. Um apelo à nossa capacidade de indignação, e também à nossa capacidade de digerir uma realidade putrefata e cruel. Os parentes e amigos de Marielle agora lidam com a sua falta. Sua ausência é também sentida pelos brasileiros e brasileiras que viam na mulher um sopro de oxigênio. Agora uma estrela, Marielle testemunha as investigações do seu assassinato, assim como o desfecho triste das ocupações das favelas que denunciava.
Trágico como o ônibus a atropelar Macabéa, o assassinato de Marielle drena a energia já escassa de uma sociedade cuja esperança em um futuro justo e igual, parecem amparados na história de uma madama cartomante. Infelizmente, Marielle não era uma personagem, mas uma mulher real, deslumbrante, e com substância. Já se passa muito tempo de silêncio e vazio. Nossa perseverança em defender seu o legado e os seus sonhos nutrem a nossa resistência. E resistiremos. E seguiremos a perguntar: Quem matou Marielle? Quem mandou matar Marielle?