Réquiem à Verdade. Ode à SUSEP

Instituto Brasileiro de Direito do Seguro - 21.SET.2020.

Líbera me, Dómine, de morte ætérna, in die illa treménda.

Quando coeli movéndi sunt et terra.

Dum véneris iudicáre sǽculum per ignem.

Tremens factus sum ego, et tímeo, dum discússio vénerit, atque ventúra ira.

Quando coeli movendi sunt et terra.

Dies illa, dies iræ, calamitátis et misériæ, dies magna et amára valde.

Dum véneris iudicáre sǽculum per ignem.

Réquiem ætérnam dona eis, Dómine: et lux perpétua lúceat eis. (Gabriel Fauré. Requiem, Op. 48: 6. Libera me).

A implacável natureza fúnebre desses tempos se impõe em todos os espaços. Entre as muitas baixas, se encontra a verdade. Vítima não de um evento, mas de vários, foi-se aos poucos, um cadinho por peste, outro por bala, pelas mãos do regulador. Deixou a cena. Foi-se. Aqui está. Mortinha. Seu réquiem toca.

Difícil escolher um réquiem para a verdade. Optei pelo magnífico do Gabriel Fauré, em seu sexto movimento, intitulado Libera me. Sempre me pego a pensar se a verdade morta nos libertará. Talvez sim. Talvez não.

Entre os retalhos causais que fizeram a moribunda morta, apresento mais um, como quem traz para um repositório mais um exemplar. A exposição de motivos apresentada pela Superintendência de Seguros Privados (SUSEP) à Consulta Pública nº. 16/2020 feriu de morte a verdade.

Interferência. Dois sons. Réquiem à verdade. Ode à SUSEP! Viva! Morte. Vida e morte:

“Up on his horse, up on his horse

Not gonna wake up here anymore

Listen one time, it's not the truth

It's just the story I tell to you

Easy to say, easy to do

But it's not easy, well maybe for you

Hope that you find it, hope that it's good

Hope that you read it, think that you should”

(Ode to the Mets. The Strokes)

Um pouco mais sobre o pecadilho Susepiano. A pretexto de justificar a aplicação de uma abordagem regulatória baseada em princípios (principles-based regulation) sobre os seguros de danos de grandes riscos, a SUSEP promove uma modificação inconstitucional ao legislar de facto para atribuir regramento jurídico excepcional para esses contratos.

O que a SUSEP sugere acontecer nas outras realidades institucionais é diferente do que realmente acontece. Mas Inês já é morta e os fatos não são importantes. Entre réquiem e ode, de repente escuto apenas ode. E os argumentos da SUSEP são dispostos de maneira a levar o(a) leitor(a) a acalmar o coração e concluir que o que a SUSEP está a fazer é puritano – similar ao que fizeram outros países referenciais (Reino Unido, Singapura, Estados Unidos, Espanha, Alemanha) andam fazendo. A diferença, no entanto, é que por lá os reguladores parecem entender melhor seu espaço de atuação institucional, e guardam um maior apreço pelas respectivas Constituições de seus países, pela distribuição das competências, pela verdade.

Em nenhum dos países mencionados pela exposição de motivos, no entanto, há a modificação de regime jurídico próprio dos contratos de seguro, para reclassificar os contratos de seguros grandes riscos, tornando-os, via regulamento, contratos paritários. Mas é esta a proposta da SUSEP para o Brasil. (Go alone. I’ll go alone. We’ll go alone. I’ll go alone).

Evidente, tal e qual o ferimento letal à verdade dos fatos, é a inconstitucional usurpação de competência privativa do Poder Legislativo da República para legislar sobre a matéria (art. 22, incisos I e VII da Constituição Federal) por parte da SUSEP, e o seu dolo, com ‘amplo, geral e irrestrito’ apoio da equipe econômica do governo Bolsonaro, em instituir um regime de contratação de contratos de seguros de danos de grandes riscos servil aos interesses do mercado segurador e ressegurador, mas frontalmente contrário aos interesses das empresas brasileiras, à gestão e à distribuição dos seus riscos operacionais, um elemento ínsito ao interesse e soberania nacional.

Por mais que exista uma evidente lacuna normativa entre as disposições gerais e abstratas do Código Civil e a prática do setor de seguros, inexiste no ordenamento jurídico brasileiro qualquer dispositivo normativo através do qual o legislador federal tenha delegado à SUSEP a sua precípua função, legislativa, normatizadora.

Conforme será a seguir demonstrado, em cada uma das exemplares referências internacionais consignadas pela “Exposição de Motivos”, é possível ver apenas metade da história. Essa narrativa, desrespeitosa com os fatos, não resistirá ao exame dialético (autópsia da verdade), exposto a seguir.

Chile

A separação entre os seguros, e a atribuição de liberdade negocial foi feita pelo Congresso chileno, e não pela sua autoridade reguladora.

Singapura

Embora o Insurance Act de Singapura expressamente divida as operações de seguro em duas classes de negócios, inexiste qualquer exceção à incidência do regramento geral da norma sobre os contratos de seguros de danos de grandes riscos.

Reino Unido

No Reino Unido, é o Insurance Act de 2015 que distingue os contratos de seguro entre aqueles contratos de consumo, que seguem a definição do Insurance Consumer Insurance Act de 2012 e aqueles que não estão submetidos ao regramento consumerista.

Como se pode perceber, com essa breve explicitação já se percebem falhas as premissas apresentadas pela SUSEP. Primeiro, a exceção feita pelos parlamentares diz respeito unicamente ao âmbito de incidência da Lei Especial de Seguro em relação aos contratos consumeristas. Seguindo, a aplicação do regramento da Lei Especial de Contrato de Seguro não é afastado e inexiste qualquer exceção legal à sua incidência sobre os seguros de danos de grandes riscos.

Espanha

A Espanha, embora não confira idêntico tratamento jurídico e regulatório aos contratos de danos e aos massificados, não afasta a aplicação de sua lei geral à interpretação dos contratos de seguro. Ao contrário, a sua lei especial de contrato de seguro (Ley 50/1980) excepciona, em seu artigo 44[1], a aplicação do seu artigo 2º[2] aos contratos de seguro de grandes riscos, tão apenas com o objetivo de afastar a aplicação imperativa dos preceitos da sua lei geral, o que é compreensível na realidade daquele país, e do seu contexto emergente, de consolidação e aprofundamento da União Europeia.

Com efeito, e evidência da afirmação anterior, é que mais adiante o artigo 107, ao disciplinar as normas de direito internacional privado, dispõe que nos contratos de seguro por grandes riscos as partes terão livre eleição da legislação aplicável. E torna obrigatória a aplicação da Lei Espanhola (Lei Especial de Contrato de Seguro incluída) quando referente a riscos localizados em território espanhol e o tomador do seguro tenha nele a sua residência ou sede administrativa, e quando o contrato decorrer de obrigação de cobertura imposta pela lei espanhola.

Percebe-se assim que na Espanha, diferentemente do que se pretende fazer no Brasil, quando há, o destacamento dos seguros de grandes riscos ocorre por iniciativa legislativa, sendo que a sua sujeição a um regramento eventualmente mais flexível jamais significou a inauguração de regramento próprio e excepcional por parte do regulador.

Alemanha

Na Alemanha, ao contrário do que diz a exposição de motivos, em mais um ato falho da sua pretensão de falseamento da realidade, menciona que “embora o órgão regulador, ao editar o Insurance Contract Act (VVG), tenha conferido ampla liberdade de negociação/contratação para a categoria seguro de danos relativos a grandes riscos (...)”, a verdade é que o Versicherungsvertragsgesetz – VVG é uma Lei Federal Alemã, editada pelo Parlamento Alemão. A exceção feita pela norma foi feita por aquele ente competente, e não pela autoridade de supervisão alemã (BaFin – Federal Financial Supervision Authority), como a desatenta exposição de motivos da Susep sugere.

Estados Unidos

A menção feita pela exposição de motivos, novamente, apresenta apenas uma parcela restrita, e omite informações de contexto, em proceder que pode levar o leitor desatento a alçar as conclusões equivocadas a respeito da realidade. O país tem um particular sistema federativo, e a regulação de seguros é partilhada entre os Estados, aspecto secular reforçado pela Suprema Corte e pelo McCarran- Ferguson Act (15 U.S.C. §§ 1011-1015), tendo o legislador federal atribuído maior atenção à questão da solvabilidade das empresas, especialmente aquelas Sistemicamente Relevantes (Systemically Important Financial Institutions – SIFI’S), no bojo da evolução da regulação financeira no pós crise de 2008, de que representativa é a promulgação do Dodd-Frank Wall Street Reform and Consumer Protection Act (12 U.S.C. Ch. 53) no ano de 2010.

A afirmação de que as partes celebrantes dos contratos de seguros de danos de grandes riscos estariam sujeitas à regulação estadual, embora seja verdadeira, reveste-se de uma conclusão falha, inclusive corroborada pela citação de estudos descontextualizados, de que, por esse motivo “predomina para o setor a liberdade de criação de novos produtos e seu oferecimento para atendimento às demandas da sociedade, uma vez que os reguladores mostram-se cada vez mais focados no melhor interesse do cliente final e na conduta da seguradora”, e de que: “Para a categoria de seguros de danos relativos a grandes riscos especificamente, a intervenção estatal dos órgãos reguladores no país é ainda menor, focada na solvência da seguradora, como apontado pela National Association of Insurance Commissioners”.

Ora, ambas as afirmações não se prestam a corroborar o objetivo inconstitucional da SUSEP de conferir regramento excepcional (para não dizer de exceção) aos seguros de danos de grandes riscos. Conforme mencionamos acima, o fato de haver, no plano federal, maior atenção à solvência das empresas, com a regulação e supervisão da conduta e produtos distribuída entre os Estados jamais permite concluir que as partes celebrantes estejam submetidas a um regime de liberdade contratual ampla, sem qualquer regulação a conformar este negócio jurídico. Ao contrário, os Estados regulam a questão aplicando variadas estratégias, não sendo possível que se conclua aprioristicamente tratar-se de um ambiente de predominante ‘liberdade econômica’.

Apenas para citar dois exemplos significativos, nos estados da California (Insurance Code, as enacted by Stats. 1935, Ch. 145), e Nova Iorque (Insurance Code ISC), inexiste qualquer separação ou exceção concedida especificamente aos seguros de danos de grandes riscos conforme previsto pela SUSEP para o mercado brasileiro, e muito menos encontram-se esses mercados “desregulados”. A propósito, e para que não seja também esta oportunidade de esclarecimento perdida, no plano federal há atualmente intensos debates em torno da regulação da atividade seguradora, com destaque para a oferta de planos de saúde.

Itália

Embora não tenha sido mencionado pela SUSEP, na Itália, o Codice delle Assicurazione Private, conforme modificação pelo Decreto Legislativo de 12 de maio de 2015, em atendimento à Diretiva 2009/138 do Conselho Europeu (Solvency II), conceitua e diferencia os seguros de danos de grandes riscos, mas em nenhum momento afasta por completo a incidência do regramento geral conferido pelo Codice delle Assicurazione Private a esses contratos (cf. arts. 27 e 184).

Com efeito, o que se observa é que a SUSEP optou por ocultar foi tão somente a tendência da suma maioria dos países desenvolvidos e em desenvolvimento, inclusive em todos os supramencionados, da promulgação e legislação especial a disciplinar os contratos de seguro. Embora o Brasil conte com o Projeto de Lei de Contrato de Seguro (PLC n. 29/2017) em avançado estágio de tramitação legislativa, inclusive já aprovado na Câmara dos Deputados, e atualmente com parecer favorável à sua aprovação na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, a SUSEP seguiu com a sua marcha ‘independente’, lancinante.

Impensável, aos menos sob o domínio declinante da defunta verdade, do vernáculo, da institucionalidade constitucional, que se conceba possível que uma circular possa interferir decisivamente no regime jurídico de direito privado aplicável ao contrato de seguro. Repita-se: não é dado à SUSEP dizer como o contrato de seguro – qualquer que seja o risco assegurado – se forma e deve ser interpretado, porque isso é uma matéria ínsita ao direito privado, em relação à qual o múnus legislativo privativo é do Congresso Nacional.

Preocupações emergentes com o setor produtivo nacional

Se, por um lado, há confusão, inadequação, e inverdades na retratação e apresentação da cena internacional pela SUSEP, por outro lado há uma clara percepção equivocada da SUSEP a respeito do mercado nacional, sobretudo das relações entre as partes na contratação de seguros de danos de grandes riscos.

Na exposição de motivos apresentada pela SUSEP se encontra uma pressuposição falsa: a de que em relação aos grandes riscos “é razoável assumir que as partes possuem plena capacidade de negociação de contratos de seguros, não havendo necessidade de intervenção regulatória relevante”. Todos os gestores das grandes empresas brasileiras sabem que esta afirmação não é verossímil. O que se observa é a primazia dos interesses seguradores sobre os interesses empresariais, principalmente em relação aos clausulados de grandes riscos.

Esta assimetria entre as partes, que ultrapassa o aspecto informacional e se debruça também sobre a própria economia política do contrato, força a uma avença muitas vezes desfavorável aos interesses do segurado.

Além disso, as operações de transferência de riscos através da celebração de contratos de resseguro e retrocessão, e a quase-imposição de cláusulas compromissórias nos contratos de grandes riscos faz com que decisões sobre os riscos das empresas brasileiras – externalidade dos interesses nacionais no plano empresarial – sejam efetivamente decididos por atores alheios à realidade local, imersos em outras culturas, sensíveis realidades estranhas à brasileira, e muitas vezes sob o regramento e procedimentos amigáveis tão somente aos interesses seguradores e resseguradores internacionais.

Embora louvável e necessário o esforço de modernização, transparência e eficiência inscritos dos objetivos e estratégia regulatórios da SUSEP para os próximos anos, é preciso que não se perca do horizonte de formulação e implementação que a política securitária deve articular-se de maneira permanente aos objetivos das políticas industrial e econômica, ao desenvolvimento nacional, a aos mandamentos da Constituição da República, à verdade. Caso triunfe, o conteúdo da nova abordagem principiológica na regulação dos seguros de danos de grandes riscos, deve guardar absoluta coerência com os princípios da Constituição, specialmente aqueles inscritos no seu art. 3º, inciso II, e especialmente o artigo 192.

Da maneira como está, o que se lê nas entrelinhas com ares de outdoor e luzes de neon é o começo do fim da regulação pública sobre esses produtos, cujas relações não são simétricas, relegando os segurados empresas nacionais à absoluta primazia dos interesses de poderosos grupos seguradores e resseguradores internacionais, em correlação de forças que material e politicamente jamais penderá aos primeiros, sendo sempre satisfatórias aos interesses e aspirações dos segundos. Essa preocupação é ampliada na medida em que a economia brasileira se reprimariza, com a já combalida indústria nacional na fila do abate, a cambalear ante a permanente inexistência de uma efetiva política industrial.

Fica este texto, também ele, como réquiem à verdade. E ode à SUSEP, que ousa poder tudo. E, caso não se preste a esses nobres objetivos, que ao menos sirva como um testemunho histórico da debacle.

NOTAS

[1] Artículo cuarenta y cuatro. El asegurador no cubre los daños por hechos derivados de conflictos armados, haya precedido o no declaración oficial de guerra, ni los derivados de riesgos extraordinarios sobre las personas y los bienes, salvo pacto en contrario. No será de aplicación a los contratos de seguros por grandes riesgos, tal como se delimitan en esta Ley, el mandato contenido en el artículo 2 de la misma” (grifo).

[2] “Artículo segundo. Las distintas modalidades del contrato de seguro, en defecto de Ley que les sea aplicable, se regirán por la presente Ley, cuyos preceptos tienen carácter imperativo, a no ser que en ellos se disponga otra cosa. No obstante, se entenderán válidas las cláusulas contractuales que sean más beneficiosas para el asegurado.”

Imagem (créditos): pixabay.

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