Governo Lula: esperança de democratização do seguro?

ESTADÃO. 16 de novembro de 2022

No Brasil, o ano é 2023. Vitoriosa a democracia após a escolha soberana do povo brasileiro. Embora o presidente eleito Lula não tenha ainda subido a rampa do Planalto, todas as atenções se voltam ao que será o seu futuro governo, suas políticas econômicas e sociais.

No setor de seguros e resseguros abre-se uma janela de esperança de democratização, sobretudo na supervisão da atividade seguradora. A compreensão do significado da esperança, como bem lembrou Lula em seu pronunciamento à COP 27, no Egito, nesta quarta-feira (16/11), ecoa a lição de Paulo Freire segundo a qual mais que substantivo, a esperança melhor se expressa quando, mais do que esperar pelo bom porvir, o realizamos na prática. Daí a sua proposta por esperançar o futuro, por meio da ação política.

O que se espera do futuro governo para o setor de seguros não pode ser menos do que um choque de democracia. Desde a regulação econômica do seguro, passando pela revisão dos canais de distribuição e, sobretudo, o processo de construção das normas que regulam a atividade seguradora, há muito a ser feito. Outro aspecto fundamental é ampliar a transparência, forjar uma nova ética corporativa, que efetivamente abrace a pauta da representatividade, da inclusão, e seja capaz de articular os objetivos financeiros, muitas vezes de curto prazo, com objetivos de longo prazo e perenes, como a preservação ambiental.

Apesar dos dados demográficos sobre o setor de seguros e resseguros no Brasil serem incipientes, basta ver algumas fotos de eventos do setor para se verificar a baixa participação de negros mulheres, maiorias sub-representadas, e de minorias.

Na regulação da atividade seguradora são também grandes os desafios do novo governo. Na sua primeira gestão, Lula conduziu a quebra do monopólio do resseguro e a liberalização do mercado ressegurador. No entanto, não dedicou a mesma atenção à revisão dos procedimentos de tomada de decisão e construção normativa pela Superintendência de Seguros Privados (Susep). É chegado o momento de discutir não a independência da autarquia - uma armadilha para a sua definitiva captura regulatória pelo mercado - mas, sobretudo, avaliar criticamente a sua função institucional, os seus processos, e a projetar-lhe um futuro compatível com o horizonte programático da Constituição Cidadã e os anseios do povo brasileiro manifestados na sua escolha nas urnas quando do exercício da cidadania.

A Susep terá que assimilar a necessidade de democratizar o setor de seguros no Brasil, e isto significa que a supervisão da atividade seguradora não se bastará mais com o equilíbrio macroprudencial. Será necessário fomentar uma nova ética no setor de seguros, comprometida com o desenvolvimento econômico e social, com o combate às desigualdades. A inclusão de novos consumidores ao mercado de seguros, oferecendo-lhes produtos adequados às suas necessidades e com o preço justo será outro desafio a ser enfrentado.

O comprometimento do presidente Lula com a agenda de adaptação e mitigação à crise climática coloca o seguro no centro do debate. O seguro pode contribuir e muito para essa agenda, sendo uma eficiente ferramenta de política disponível para incentivar a governança climática de empresas, entes públicos e indivíduos.

Por esses motivos, a regulação econômica do setor terá que acrescentar novas funções àquelas já existentes da manutenção da solvência, do equilíbrio do sistema financeiro, da proteção dos direitos dos consumidores e consumidoras. Será necessário que se pensem programas de inclusão e formação de profissionais mais amplos, o levantamento de dados demográficos confiáveis sobre o setor, além da supervisão de aspectos da operação do seguro antes não verificados em detalhe (verificação de critérios ambientais da política de subscrição de riscos, monitoramento e acompanhamento do risco pelo segurador durante a execução do contrato, e dados sobre os investimentos institucionais).

A revisão dos canais de distribuição de seguros é outra seara relevante e imprescindível para a realização do objetivo de democratizar o acesso aos produtos de seguros no país. Experiências regulatórias como a sandbox devem ser submetidas a um processo de avaliação pós-implementação, e novas formas de acesso ao mercado, assim como a formatação de novos produtos devem estar na pauta.

A opacidade da Susep na construção normativa, considerada por este escriba autoritária, é um dos aspectos mais sensíveis para a democratização do setor de seguros no país. Nesse momento de redemocratização, não há mais espaço para que decisões relevantes de política de seguros, inclusive aquelas relacionadas com a gestão dos seguros obrigatórios (como o DPVAT), sejam tomadas de maneira obscura, arbitrária, e sob a suspeita de estarem a ser tomadas com desvio de finalidade. É preciso que a Susep assuma primeiramente para si a agenda da democratização para, então, ser capaz de institucionalmente estabelecer uma nova ética para o setor de seguros.

Nessa toada, será necessário reafirmar o princípio da transparência, e aplicá-lo firmemente. Garantir a revelação e a acessibilidade e inteligibilidade dos dados sobre as remunerações dos executivos das empresas, inclusive o pagamento de bônus e demais benefícios, deve ser a regra pétrea. Sim, salários astronômicos e remunerações obscenas pagas em tempos de profunda crise social e econômica deverão estar sujeitas ao escrutínio público. É o que se espera de uma república democrática e constitucional de respeito como a brasileira.

No âmbito dessa articulação da regulação financeira com a regulação ambiental e a defesa do direito dos consumidores, é de se pensar uma aproximação com a abordagem e os preceitos da regulação sobre os serviços públicos essenciais. O olhar da Susep com relação aos consumidores poderia aprimorar-se para que sejam considerados pela Superintendência não como consumidores, mas enquanto usuários de um sistema essencial de cobertura de riscos e socialização de perdas. Não há mais tempo para aguardar novos ventos de esperança. A hora é de esperançar!

Vitor Boaventura, Advogado, Mestre em Regulação pela London School of Economics and Political Science (Reino Unido), sócio de ETAD. Membro do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS) e da Associação Brasileira dos Juristas pela Democracia (ABJD).

Anterior
Anterior

Seguro: infraestrutura econômica da neoindustrialização    

Próximo
Próximo

STJ: Tribunal da Cidadania? Dia D para o Tribunal no julgamento sobre a taxatividade do rol da ANS