Desaparecer é mais fácil que reaparecer
Reforma da cidadania italiana exclui os excluídos e reforça uma injustiça histórica.
Na música “Milioni”, de Federico Nardelli, Filippo Uttinacci e Flavio Pardini, os cantores Gazzelle e Fulminacci cantam um verso perfeito para analisar a reforma da cidadania italiana promovida pelo Governo de Giorgia Meloni, que restringe o direito à cidadania para descendentes de italianos nascidos no exterior: desaparecer é mais fácil que reaparecer [“scomparire è piu facile di riapparire”].
Para além da obscena inconstitucionalidade da reforma, o Conselho de Ministros do Governo italiano reforçou o processo de exclusão de estratos relevantes da população italiana, originado no processo de unificação italiana. A medida ignora a necessidade de promover uma reparação histórica aos milhões de cidadãos excluídos da Itália por meio do reconhecimento da cidadania italiana aos seus descendentes.
Ao discursar sobre a reforma da cidadania, Antonio Tajani, vice-primeiro-ministro da Itália e Ministro das Relações Exteriores, afirmou que “ser cidadão italiano é uma coisa séria” e que “a concessão da cidadania não pode ser um automatismo para quem tenha um ascendente que emigrou há séculos, sem nenhum vínculo cultural ou linguístico com a Itália”.
Sobre a injusta afirmação de Tajani de que os descendentes não guardam vínculo cultural com a Itália, recomenda-se fortemente ao vice-primeiro-ministro que faça uma viagem aos estados do Rio Grande do Sul ou Santa Catarina, no Brasil, ou mesmo à Buenos Aires ou Mendoza, na Argentina, ou, para facilitar, que coma uma boa pizza paulistana enquanto assiste um jogo de futebol do Palestra Itália, quer dizer, do Palmeiras.
Questionar o vínculo cultural e exigir o conhecimento da língua ao dizer que a cidadania italiana é uma coisa séria descendentes de milhões de pessoas que foram embora de uma Itália nascente durante um processo de exclusão, é indecente. Vale lembrar que muitos italianos imigrantes sequer eram falantes da língua italiana padrão, baseada no dialeto fiorentino.
Os descendentes de italianos bem sabem que a cidadania italiana é coisa séria – afinal, seus antepassados deixaram a sua terra natal por causa processos violentos, como a guerra de unificação e a primeira guerra mundial, e que resultaram no agravamento da fome e da pobreza. Os imigrantes italianos orgulhosamente participaram da construção de muitos dos países do novo mundo, e levaram consigo fragmentos da Itália que tanto amavam para os seus descendentes, mas não deixaram de transmitir aos seus descendentes as memórias difíceis desse tempo.
Esses fragmentos, pedaços da memória coletiva que puderam transportar em malas e baús a bordo de vapores para o além-mar, têm significado afetivo e valor cultural para os milhões de descendentes dos italianos abandonados de uma Itália que nascia – uma pátria mãe que não conseguiu manter em seu seio tantos dos seus filhos e filhas.
Se hoje são brasileiros, argentinos, americanos, venezuelanos, canadenses e tantas outras nacionalidades, os descentes de italianos seguirão, com muito orgulho, também italianos. Legatários da cultura, das memórias e afetos que foram trazidos pelos avós, bisavós, e tataravós da mesma Itália que um dia os deixou ir embora e que, hoje, os quer fazer desaparecer. A identidade e a cultura italiana presentes entre os descendentes de italianos persistirão, apesar da reforma de cidadania proposta pelo Governo Meloni.